quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Maria Isaura Pereira de Queiroz e os messianismos

 

A autora se destaca por apresentar um estudo precursor nas sociologias religiosas à respeito dos messianismos, em abordagem diferenciada das de outros estudiosos que antecederam.
Até a década de 1950 os messianismos eram observados sob o prisma de patologias sociais ou surtos de fanatismos religiosos. Exemplos de estudiosos como Euclides da Cunha, Raimundo Nina Rodrigues e Rui Facó, por exemplo, enxergaram os messianismos sob esses aspectos.
Porém, Maria Isaura inaugura outra interpretação. Os analisava sob a ótica do dinamismo social (interações entre os agentes que compunham as relações sociais). Traça tipologias dos messianismos e os classifica, levando-se em conta complexidades inerentes de cada movimento messiânico. Quanto as tipologias, relaciona-os como:
a) movimentos que dizem respeito à formação de sociedades globais e que pretendem retornar à antiga organização, sendo ora de segregação, ora de agregação;
b) movimentos que dizem respeito à configuração interna de sociedades globais, ora reagindo contra processos de mudanças social, ora reagindo contra processos de anomia, e distinguindo-se em movimentos revolucionários e movimentos reformistas; e
c) movimentos que dizem respeito ao mesmo tempo à formação e configuração de sociedades globais (movimentos mistos), pretendendo a um tempo segmentá-la e subverter a estrutura hierárquica interna, constituindo movimentos revolucionários.
Além das diferenciações acima indicadas, Maria Isaura Pereira de Queiroz observa que os movimentos messiânicos estavam sempre ligados a crises de estruturas e organizações sociais e que sempre os encontramos relacionados com estruturas regidas pelo sistema de parentesco, houvesse ou não dualidade estrutural (2003, p. 330).
Um exemplo seria o movimento de Canudos, que, em decorrência da transição monarquia – república (1889), acabou gerando um vazio no consciente coletivo, pois, sem a figura do Rei (enviado de Deus), a República não oferecera nada que o substituísse. Pelo contrário, favorece o banditismo nas regiões interioranas e também o abandono dessas populações, promovendo concentração apenas nas capitais e litoral do Brasil. Esses movimentos são, portanto, fruto de instabilidades de ordem política, econômica, cultural e religiosa.
Essa obra é uma das mais completas abordagens sobre os messianismos, juntamente com o “Dicionário de Messianismos e milenarismos”, do padre e sociólogo francês Henri Desroche.

Fonte:

QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O messianismo no Brasil e no mundo. 3ª ed. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 2003.

Eder Silva é mestre em Teologia (PUCPR), especialista em Sociologia Política (UFPR), bacharel em Turismo (UP) e Teólogo (FCC) e blogueiro nas horas vagas. Este artigo reflete as opiniões do autor. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

O Outsider em terras de cegos e velhacos oportunistas

 

                                            xilografia de Clifford Webb


“Meu amor olhe para os lados: desde crianças só lemos os quadrinhos de jornais”

(PICASSOS FALSOSQuadrinhos)

Em uma época movida por ditaduras cacofônicas, sorrateiramente reinam na cultura urbana (e por vezes, também nas suburbanas e rurais), questiono um velho ditado onde afirma-se que “em terra de cegos quem tem um olho é rei”.

Nestas linhas, apresentaremos alguns possíveis porquês de tal questionamento.

Nos deparamos com uma situação em que as liberdades individuais são sacrificadas por premissas de leis globais, ditadas por uma casta superior composta de meta-capitalistas das big techs e indústria farmacêutica que, em grande proporção, não apresentam um mínimo de conhecimento prévio ou certificação científica daquilo que promulgam; ou melhor, vomitam nas mídias, em geral. Julgam-se entidades superiores, a realeza representativa das sociedades, déspotas esclarecidos. E eu que pensava ser este último adjetivo relegado a um passado bem remoto!

Com a avalanche de vômitos despejados na arena social, tende ocorrer possíveis achatamentos nas liberdades e responsabilidades civis individuais. O Leviatã, substantivo que denota essa casta de celebridades, inflama-se, conclamando sua guerra (já com ares de vitória)!

A plebe se ajoelha e chora, clamando por misericórdia. Mesmo em meio às vozes que clamam nesse mar de cacofonias vomitadas, os outsiders, à beira do abismo, posicionam-se com os pescoços já postos na despótica guilhotina…

Aos indecisos, mornos e oportunistas de plantão, cujo codinome mais se assemelha às aves de rapina que espreitam as desgraças e tragédias cíclicas da humanidade, cabe-lhes o “silêncio lucrativo a longo prazo” (grifo nosso). A estes, que mais se assemelham aos vendilhões dos templos sagrados, em nome de um protecionismo prolixo e alienante sucateiam o que restam de responsabilidades individuais e, em nome de obrigatoriedades onde nem mesmo eles acreditam serem adequadas para sua própria proteção, lançam sua contribuição compulsória às atrocidades institucionalizadas por um estado mórbido e lascivo.

Um caso desses me ocorreu quando dava carona, com meu veículo próprio, um automóvel, a uma senhora. Eu já contava com duas pessoas, que seguiriam viagem comigo (ambas, juntamente comigo, não usavam as pandêmicas mordaças). Sequer me dei conta que estávamos sem a tal sacralizada indumentária. Conversávamos espontaneamente sobre assuntos de interesses mútuos e corriqueiros. Ao embarcar, antes de qualquer ato ou cumprimento, a tal senhora que havia me pedido um favor para trazê-la até nossa cidade de origem apregoou-nos sua reprovação instantânea: “Nossa! Vocês não estão usando máscaras? Como pode isso, hein?”

Seguiu-se breve momento de silêncio aliado a certa perplexidade… Mas eis que, com considerável paciência, tentei localizar minha máscara. Infelizmente não a encontrei. Mas ao invés, encontrei um questionamento: por que tenho que ser obrigado a usar máscaras no meu próprio veículo? 

Eu ofereci uma carona. Meu veículo não é um coletivo público ou veículo de transporte rodoviário, mas um automóvel. Tornei-me um misto de perplexo e injuriado pelas palavras dessa senhora. De modo algum eu teria coragem ou ousadia de persuadir alguém a adotar um costume desses, mesmo que insanamente preconizado pela nova ordem sanitária globalista.

É fato que, para quem acredita na eficácia de alguma dessas medidas ditadas pelo Estado Leviatã, geralmente põe-se em iminente contradição. Vejamos: se realmente essa senhora acredita que o uso de máscaras, ou a obrigatoriedade da vaChinação em massa oferecesse alguma espécie de eficácia contra a proliferação de algum tipo de virulência, porquê da preocupação com o não uso da máscara por parte de outrem? Já não estão fazendo a parte que lhes cabe, protegendo-se individualmente? Ou caberia aqui um jargão: o tal do “politicamente correto“?

Se, ademais, no quadro que tentamos esboçar por estas breves linhas possuir algum senso de realidade, então poderá haver uma meticulosa tentativa de auto-sabotagem nas liberdades e responsabilidades individuais e, consequentemente, uma crise de consciência no coletivo.    

Pois bem… diante de tal frenético zeitgeist[1] ao qual fomos circunstanciados, não se encontrou quaisquer sensibilidade crítica que melhor reinterprete esse momento, a não ser o qual, numa terra de cegos quem tem um olho é bruxo, ou ainda: um demônio rebelde e promotor de confusões; ou pior, um típico protótipo genocida, avesso ao welfare state[2].

Cabe um autoexame: até onde podemos seguir e até onde devemos criticar o stablishment, pois aqui no arraial das incertezas, onde há “um incêndio sob a chuva rala, somos iguais em desgraça”[3]. Para endossar tal situação, cito um trechinho de um dos meus livros de cabeceira, e que ofereço aos nossos inteligentinhos[4] de plantão, nossos fiscais de comportamento:

Ainda quereis ser pagos, ó virtuosos! Quereis recompensa pela virtude, céu pela terra e eternidade por vosso hoje? E agora vos irritais comigo por ensinar que não existe um tesoureiro pagador? E, em verdade, não ensino sequer que a virtude é sua própria recompensa. (…) E há também aqueles que consideram virtude dizer: ‘Virtude é necessária’; mas no fundo acreditam apenas que a polícia é necessária[5].


Publicado em 21 dez 2021.

[1] Traduzido como “espírito do tempo”.

[2] Conhecido em terras tupiniquins como “Estado de bem estar social”, onde as esmolas caem como dádivas celestiais ou dionisíacas, conforme a crença política e a subserviência a um paternalismo irresponsável e colonialista.

[3] Alusão à canção de CAZUZA, intitulada Blues da Piedade.

[4] A interpretação desse termo remete ao exposto pelo filósofo tupiniquim Luiz Felipe Pondé, a uma casta que também é vista como “os politicamente corretos”, muito vista nas nossas ruas e vizinhanças.

[5] Fragmento retirado do capítulo Os virtuosos, de Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, Companhia das Letras, 2011, pp. 89-91.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

 


MACHADO DE ASSIS – Adão & Eva



A panelinha, almoço de escritores e artistas no Hotel Rio Branco, dos “festivos ágapes”, criado por M.A. em 1901. De pé: Rodolfo Amoedo, Arthur Azevedo, Ingles de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, João Carneiro de Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio, Afrânio Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos. 


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.
Rezaria seus versos, os mais belos,
Desses que desde a infância me embalaram
E quem me dera que alguns fossem meus!
        Porque a poesia purifica a alma
... e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – um belo poema sempre leva a Deus!

                                                                                             MARIO QUINTANA


O escritor fluminense Machado de Assis, ao lado de Eça de Queiroz, por muitos é considerado como o melhor escritor de língua portuguesa do século XIX. Iniciou sua trajetória como contista, seu primeiro texto data de 6 de janeiro de 1855 (cf. ANTUNES & MOTTA, 2008, p. 33). Em 1858 publica “Três tesouros perdidos”, avançando sua produção literária como poeta (“Crisálidas” e “Falenas”), publicadas em 1864 e 1870, respectivamente.

 Representou-se também como dramaturgo, produzindo peças teatrais na antiga capital da República, Rio de Janeiro, e também como autor de romances, crônicas, críticas literárias, entre outras modalidades de produção cultural relacionadas às letras e oratória.

Considerado como pertencente a última geração da escola do romantismo no Brasil, foi o responsável por inaugurar uma outra escola literária brasileira: o realismo, sendo este caracterizado, sobretudo, por aspectos como a “crítica social”, dotada de maior ousadia em relação a composição de temas como escravidão, burguesia, transição política, casamento, “desteificação do mundo”[1], por exemplo.

Entretanto, o bruxo do Cosme Velho (apelido dado por alguns moradores do bairro onde residia o autor nos últimos anos), fugia a algumas das características desse gênero literário (Realismo), evitando o determinismo e o cientificismo, por exemplo; inclusive tecendo críticas a estes fenômenos sociais latentes e em voga naquela época, também denominada de “mundo tardomoderno” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 29).

Construindo seus personagens ao redor de dilemas universais, complexidades locais e fenômenos históricos e de rupturas na ordem estabelecida (stablishment), buscou envolver e aguçar o leitor a ampliar sua visão ética, estética e psicológica, possibilitando-lhes o “alcance caleidoscópico das realidades múltiplas[2].

Principalmente nas obras de sua fase ligadas ao período do realismo, podemos encontrar elementos que remetem a construção literária caracterizada por metáforas, sendo que a intencionalidade dos efeitos se voltavam mais para aspectos fenomenológicos do que para a construção de realidades últimas das circunstâncias abordadas.

Neste sentido, visando facilitar a compreensão desta característica em suas obras, incluindo-se o conto “Adão & Eva”, sinalizamos o conceito de “metáfora viva” (grifo nosso) elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur[3]. Observamos no enredo deste conto um Machado de Assis preocupado com a criatividade da linguagem e seu alcance para uma realidade fenomenológica, ou seja, uma realidade mais relacionada à experiência e a uma noção de percepção criativa e espontânea das vivências do que para uma realidade conceitual e ideológica, estabelecedora de dogmas e fins dotados de juízos de valor.

Neste ponto, quando refletimos sobre a metáfora viva, a literatura passa a equivaler-se de novas funcionalidades, como as ressignificações adaptáveis às múltiplas percepções dos leitores, quando imergidos na complexidade figurativa dos personagens machadianos. Assim, a “obra literária passa a ter um mundo autônomo” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 22), uma vida própria que rompe uma antiguidade de compreensão aristotélica pautada nos processos “miméticos” (grifo nosso), ou seja, em experiências comparadas com outras vividas ou imaginadas.

E aqui podemos observar a conjunção deste conceito, a saber: a metáfora viva, dentro do contexto do conto “Adão & Eva”, que traz novas significações mesmo dentro do próprio enredo, tendo em vista que o autor leva-nos a repensar o sentido essencial do texto, desconstruindo a nossa direção, que tende se voltar para a discussão envolvendo a dogmática cristã; pelo contrário, aqui apresenta a beleza textual criativa ao nos fazer observar, mesmo que subliminarmente, um contexto bem distinto: a expectativa por saborear “o doce”, em detrimento aos apelos retóricos narrados ao longo do conto. Saborear o doce, para o autor, recebe nitidamente ares de um protagonismo, mesmo contendo poucas linhas no texto. O doce é “per se”, e se transforma distintamente ontológico, que existe, independentemente de conjecturas humanamente frágeis, formulações irresponsavelmente solidificadas pela natureza de uma historicidade débil nas reinterpretações sofridas.

Inferimos, portanto, que

 

há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo em relação à metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma região não-verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície linguística dos símbolos e ainda uma inovação discursiva [...] poderemos também dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário operado pela atuação metafórica pode promover um processo de equivalência entre o sentido manifesto e as profundidades simbólicas de nossa existência (grifo nosso). (RICOEUR, 2000, p. 80 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 23-24)

 

Ainda, poderíamos sinalizar essa questão, a saber: sobre a linguística dos símbolos, apontando para realidades “encobertas” (grifo nosso), mas que podem se tornar acessíveis mediante uma dimensão não-verbal, supostamente manifestada pela metáfora, diante da compreensão por Paul Tillich[4], que expõe sua análise, pautando-se que o símbolo é devedor a “noção de história [...] emergem e desaparecem de acordo com épocas” (ibid, p. 25). Compete-nos saber que a época em que foi publicado o conto “Adão & Eva” contextualizava com uma ambientação influenciada pelo ceticismo oriundo de um racionalismo filosófico, bem como teorias ligadas a um darwinismo social, até mesmo por parte de ícones do pensamento científico brasileiro, como o caso das interpretações euclideanas[5] acerca de fenômenos de messianismos, revoltas e insatisfações provocadas por rupturas como o advento da República, entre outros.

As confluências do nosso contista às percepções paralelas de Paul Ricoeur e Paul Tillich leva-nos compreender, mesmo que parcialmente, a complexidade de sua narrativa, quando apresenta uma temática polêmica e, ao invés de sugerir alguma projeção conclusiva acerca das ideias alocadas, leva-nos a um desfecho distinto daquele aguardado pela maioria dos leitores, ao longo do conteúdo abrangente no conto.

 Deste modo,

 

torna-se “possível compreender que a suspensão de uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível como pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado mundo do texto. Neste mundo, entretanto, é possível perceber as operações imaginativas que a literatura efetua sobre o real (CONCEIÇÃO, 2013, p. 27)

 

Portanto, se considerarmos os elementos temporais e espaciais os quais o nosso autor estava inserido (relevância histórica), bem como suas influências literárias (Dante, Voltaire, Shakespeare, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, entre outros), resta-nos enfatizar nitidamente a impossibilidade de se colher, através da leitura de suas obras, vereditos conclusivos ou percepções definitivas que venham alçar uma ideia de verdade última das coisas. Sabe-se que, para Machado de Assis, as “tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas. Quando se chega ao ápice de tal odisseia – a cisão entre mundo verdadeiro e mundo aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus” (CASANOVA, 2003, p. 194 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 31).

Cabe ainda ressaltar que para Paul Ricoeur, na sua obra “A metáfora viva”, o mito de Adão representa a universalidade do mal, e Adão representa, deste modo, a humanidade toda. Neste sentido, observamos semelhanças com a percepção de Tillich, visto que

 

o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul Tillich não porque se configurava com uma degenerada (grifo do autor) expressão artística, mas porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície do real, representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo fundamento da realidade, num momento específico e historicamente construído. Seria a religião, por meio das expressões criativas do ser humano, o estado em que o ser humano passaria ser tomado por algo incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua preocupação última. A religião, se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um lugar de enraizamento de sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o espaço mesmo de nossa preocupação suprema. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 76)

 

Contudo nossa reflexão não se paute numa ordem puramente teológica agnóstica ou alguma religiosidade entrelaçada com aspectos ateístas, podemos sugerir que o bruxo do Cosme Velho buscou vingar-se do deus forjado pelo consciente coletivo, vingança arquitetada através de um doce, salpicado em doses homeopáticas na teologia cristã, e recheado de uma “preocupação suprema” e, por que não, sublime. Mas engana-se quem pensa que o autor do conto Adão & Eva contrapunha-se a ideia de espiritualidade ou até mesmo a uma filiação religiosa:

 

Entretanto ia-me afeiçoando à ideia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce (grifo nosso). (ASSIS, Dom Casmurro, cap. XI – A Promessa)

 

Pois que, mesmo diante de um deus morto, “não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo” (BLANCHOT, 1997, p. 15-16 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 90). Por mais contundente e exposto (expressionismo) que se apresenta uma possibilidade de vingança ao deus conceitual, na criatividade artística nem a morte se torna realidade, mas a vida, com sua bela complexidade.

A exemplo da personagem machadiana, o juiz de fora, também trocaríamos o divino por um prato de doce, propiciando, literalmente, uma “doce vingança”, ou nos dobraríamos ao encanto, como o bruxo do Cosme Velho, de extrairmos do texto bíblico o néctar: a beleza trágica?

 

PONTOS DE REFLEXÃO:

- A união entre o frei (teologia) e o juiz de fora (inventividade criativa – realismo fantástico);

- Alusão ao livro de Jó, onde há uma onisciência evidente em Deus, enquanto que satanás opera a maldade, porém, sob a observância e autorização divina;

- Alusão ao fato de que, se Adão e Eva tivessem ido para o céu, então as pessoas que se encontravam ao redor da mesa tinham como filiação satanás; e também uma suposta alusão de que o “mundo jaz no maligno” (1 Jo 5:19), confluindo com a ideia do texto 2 Co 4:4: “nos quais o deus deste mundo (o príncipe deste século) cegou o entendimento dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”.

 

 REFERÊNCIAS

 

ANTUNES, Benedito & MOTTA, Sérgio Vicente. Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: UNESP, 2009.

BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Teologias e literaturas 3 – Aspectos religiosos em Machado de Assis. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

MACHADO DE ASSIS, José Maria. Várias estórias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.

TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974.



[1] Alusão ao conceito nietzschiano da “morte de Deus”, abandono dos valores sagrados, e também de um certo antagonismo à alienação religiosa promovida pelo cristianismo institucional, vigentes na época.

[2] A intensão daquele que vos escreve, no tocante à terminologia em questão, é salientar uma das preocupações possíveis do autor, quanto às características da época em que viveu, como por exemplo, um cientificismo pragmático e determinismos sociais herdados da era moderna, que outrora promoveria catástrofes inéditas como as Grandes Guerras Mundiais e outras tragédias não menos sangrentas, oriundas de fundamentalismos e ideologias precursoras de exclusivismos notavelmente destruidores e genocidas.

[3] Filósofo francês (1913-2005) que contribuiu para a linguística, psicanálise, fenomenologia e hermenêutica, e interessou-se por questões envolvendo o existencialismo cristão e teologia protestante (influenciado pelo suíço Karl Barth). Além de órfão de mãe e de pai (este morreu em conflito bélico em 1915), foi prisioneiro pelos nazistas na Segunda Guerra, passando por dois campos de concentração.

[4] Teólogo suíço, cuja abordagem coaduna com as percepções de Paul Ricoeur, referente fenomenologia como instrumento metodológico para a Teologia.

[5] Na obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha tece uma análise sobre o movimento organizado por Antônio Conselheiro, considerando-o como patologia social, ou seja, seguindo em linhas parecidas com os de Raimundo Nina Rodrigues, um médico que fundamentava suas pesquisas sobre a violência e o banditismo social em vistas da análise de crânios dos representantes populares dos movimentos sociais.