terça-feira, 19 de setembro de 2023

 


MACHADO DE ASSIS – Adão & Eva



A panelinha, almoço de escritores e artistas no Hotel Rio Branco, dos “festivos ágapes”, criado por M.A. em 1901. De pé: Rodolfo Amoedo, Arthur Azevedo, Ingles de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, João Carneiro de Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio, Afrânio Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos. 


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.
Rezaria seus versos, os mais belos,
Desses que desde a infância me embalaram
E quem me dera que alguns fossem meus!
        Porque a poesia purifica a alma
... e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – um belo poema sempre leva a Deus!

                                                                                             MARIO QUINTANA


O escritor fluminense Machado de Assis, ao lado de Eça de Queiroz, por muitos é considerado como o melhor escritor de língua portuguesa do século XIX. Iniciou sua trajetória como contista, seu primeiro texto data de 6 de janeiro de 1855 (cf. ANTUNES & MOTTA, 2008, p. 33). Em 1858 publica “Três tesouros perdidos”, avançando sua produção literária como poeta (“Crisálidas” e “Falenas”), publicadas em 1864 e 1870, respectivamente.

 Representou-se também como dramaturgo, produzindo peças teatrais na antiga capital da República, Rio de Janeiro, e também como autor de romances, crônicas, críticas literárias, entre outras modalidades de produção cultural relacionadas às letras e oratória.

Considerado como pertencente a última geração da escola do romantismo no Brasil, foi o responsável por inaugurar uma outra escola literária brasileira: o realismo, sendo este caracterizado, sobretudo, por aspectos como a “crítica social”, dotada de maior ousadia em relação a composição de temas como escravidão, burguesia, transição política, casamento, “desteificação do mundo”[1], por exemplo.

Entretanto, o bruxo do Cosme Velho (apelido dado por alguns moradores do bairro onde residia o autor nos últimos anos), fugia a algumas das características desse gênero literário (Realismo), evitando o determinismo e o cientificismo, por exemplo; inclusive tecendo críticas a estes fenômenos sociais latentes e em voga naquela época, também denominada de “mundo tardomoderno” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 29).

Construindo seus personagens ao redor de dilemas universais, complexidades locais e fenômenos históricos e de rupturas na ordem estabelecida (stablishment), buscou envolver e aguçar o leitor a ampliar sua visão ética, estética e psicológica, possibilitando-lhes o “alcance caleidoscópico das realidades múltiplas[2].

Principalmente nas obras de sua fase ligadas ao período do realismo, podemos encontrar elementos que remetem a construção literária caracterizada por metáforas, sendo que a intencionalidade dos efeitos se voltavam mais para aspectos fenomenológicos do que para a construção de realidades últimas das circunstâncias abordadas.

Neste sentido, visando facilitar a compreensão desta característica em suas obras, incluindo-se o conto “Adão & Eva”, sinalizamos o conceito de “metáfora viva” (grifo nosso) elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur[3]. Observamos no enredo deste conto um Machado de Assis preocupado com a criatividade da linguagem e seu alcance para uma realidade fenomenológica, ou seja, uma realidade mais relacionada à experiência e a uma noção de percepção criativa e espontânea das vivências do que para uma realidade conceitual e ideológica, estabelecedora de dogmas e fins dotados de juízos de valor.

Neste ponto, quando refletimos sobre a metáfora viva, a literatura passa a equivaler-se de novas funcionalidades, como as ressignificações adaptáveis às múltiplas percepções dos leitores, quando imergidos na complexidade figurativa dos personagens machadianos. Assim, a “obra literária passa a ter um mundo autônomo” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 22), uma vida própria que rompe uma antiguidade de compreensão aristotélica pautada nos processos “miméticos” (grifo nosso), ou seja, em experiências comparadas com outras vividas ou imaginadas.

E aqui podemos observar a conjunção deste conceito, a saber: a metáfora viva, dentro do contexto do conto “Adão & Eva”, que traz novas significações mesmo dentro do próprio enredo, tendo em vista que o autor leva-nos a repensar o sentido essencial do texto, desconstruindo a nossa direção, que tende se voltar para a discussão envolvendo a dogmática cristã; pelo contrário, aqui apresenta a beleza textual criativa ao nos fazer observar, mesmo que subliminarmente, um contexto bem distinto: a expectativa por saborear “o doce”, em detrimento aos apelos retóricos narrados ao longo do conto. Saborear o doce, para o autor, recebe nitidamente ares de um protagonismo, mesmo contendo poucas linhas no texto. O doce é “per se”, e se transforma distintamente ontológico, que existe, independentemente de conjecturas humanamente frágeis, formulações irresponsavelmente solidificadas pela natureza de uma historicidade débil nas reinterpretações sofridas.

Inferimos, portanto, que

 

há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo em relação à metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma região não-verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície linguística dos símbolos e ainda uma inovação discursiva [...] poderemos também dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário operado pela atuação metafórica pode promover um processo de equivalência entre o sentido manifesto e as profundidades simbólicas de nossa existência (grifo nosso). (RICOEUR, 2000, p. 80 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 23-24)

 

Ainda, poderíamos sinalizar essa questão, a saber: sobre a linguística dos símbolos, apontando para realidades “encobertas” (grifo nosso), mas que podem se tornar acessíveis mediante uma dimensão não-verbal, supostamente manifestada pela metáfora, diante da compreensão por Paul Tillich[4], que expõe sua análise, pautando-se que o símbolo é devedor a “noção de história [...] emergem e desaparecem de acordo com épocas” (ibid, p. 25). Compete-nos saber que a época em que foi publicado o conto “Adão & Eva” contextualizava com uma ambientação influenciada pelo ceticismo oriundo de um racionalismo filosófico, bem como teorias ligadas a um darwinismo social, até mesmo por parte de ícones do pensamento científico brasileiro, como o caso das interpretações euclideanas[5] acerca de fenômenos de messianismos, revoltas e insatisfações provocadas por rupturas como o advento da República, entre outros.

As confluências do nosso contista às percepções paralelas de Paul Ricoeur e Paul Tillich leva-nos compreender, mesmo que parcialmente, a complexidade de sua narrativa, quando apresenta uma temática polêmica e, ao invés de sugerir alguma projeção conclusiva acerca das ideias alocadas, leva-nos a um desfecho distinto daquele aguardado pela maioria dos leitores, ao longo do conteúdo abrangente no conto.

 Deste modo,

 

torna-se “possível compreender que a suspensão de uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível como pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado mundo do texto. Neste mundo, entretanto, é possível perceber as operações imaginativas que a literatura efetua sobre o real (CONCEIÇÃO, 2013, p. 27)

 

Portanto, se considerarmos os elementos temporais e espaciais os quais o nosso autor estava inserido (relevância histórica), bem como suas influências literárias (Dante, Voltaire, Shakespeare, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, entre outros), resta-nos enfatizar nitidamente a impossibilidade de se colher, através da leitura de suas obras, vereditos conclusivos ou percepções definitivas que venham alçar uma ideia de verdade última das coisas. Sabe-se que, para Machado de Assis, as “tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas. Quando se chega ao ápice de tal odisseia – a cisão entre mundo verdadeiro e mundo aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus” (CASANOVA, 2003, p. 194 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 31).

Cabe ainda ressaltar que para Paul Ricoeur, na sua obra “A metáfora viva”, o mito de Adão representa a universalidade do mal, e Adão representa, deste modo, a humanidade toda. Neste sentido, observamos semelhanças com a percepção de Tillich, visto que

 

o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul Tillich não porque se configurava com uma degenerada (grifo do autor) expressão artística, mas porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície do real, representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo fundamento da realidade, num momento específico e historicamente construído. Seria a religião, por meio das expressões criativas do ser humano, o estado em que o ser humano passaria ser tomado por algo incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua preocupação última. A religião, se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um lugar de enraizamento de sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o espaço mesmo de nossa preocupação suprema. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 76)

 

Contudo nossa reflexão não se paute numa ordem puramente teológica agnóstica ou alguma religiosidade entrelaçada com aspectos ateístas, podemos sugerir que o bruxo do Cosme Velho buscou vingar-se do deus forjado pelo consciente coletivo, vingança arquitetada através de um doce, salpicado em doses homeopáticas na teologia cristã, e recheado de uma “preocupação suprema” e, por que não, sublime. Mas engana-se quem pensa que o autor do conto Adão & Eva contrapunha-se a ideia de espiritualidade ou até mesmo a uma filiação religiosa:

 

Entretanto ia-me afeiçoando à ideia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce (grifo nosso). (ASSIS, Dom Casmurro, cap. XI – A Promessa)

 

Pois que, mesmo diante de um deus morto, “não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo” (BLANCHOT, 1997, p. 15-16 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 90). Por mais contundente e exposto (expressionismo) que se apresenta uma possibilidade de vingança ao deus conceitual, na criatividade artística nem a morte se torna realidade, mas a vida, com sua bela complexidade.

A exemplo da personagem machadiana, o juiz de fora, também trocaríamos o divino por um prato de doce, propiciando, literalmente, uma “doce vingança”, ou nos dobraríamos ao encanto, como o bruxo do Cosme Velho, de extrairmos do texto bíblico o néctar: a beleza trágica?

 

PONTOS DE REFLEXÃO:

- A união entre o frei (teologia) e o juiz de fora (inventividade criativa – realismo fantástico);

- Alusão ao livro de Jó, onde há uma onisciência evidente em Deus, enquanto que satanás opera a maldade, porém, sob a observância e autorização divina;

- Alusão ao fato de que, se Adão e Eva tivessem ido para o céu, então as pessoas que se encontravam ao redor da mesa tinham como filiação satanás; e também uma suposta alusão de que o “mundo jaz no maligno” (1 Jo 5:19), confluindo com a ideia do texto 2 Co 4:4: “nos quais o deus deste mundo (o príncipe deste século) cegou o entendimento dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”.

 

 REFERÊNCIAS

 

ANTUNES, Benedito & MOTTA, Sérgio Vicente. Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: UNESP, 2009.

BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Teologias e literaturas 3 – Aspectos religiosos em Machado de Assis. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

MACHADO DE ASSIS, José Maria. Várias estórias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.

TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974.



[1] Alusão ao conceito nietzschiano da “morte de Deus”, abandono dos valores sagrados, e também de um certo antagonismo à alienação religiosa promovida pelo cristianismo institucional, vigentes na época.

[2] A intensão daquele que vos escreve, no tocante à terminologia em questão, é salientar uma das preocupações possíveis do autor, quanto às características da época em que viveu, como por exemplo, um cientificismo pragmático e determinismos sociais herdados da era moderna, que outrora promoveria catástrofes inéditas como as Grandes Guerras Mundiais e outras tragédias não menos sangrentas, oriundas de fundamentalismos e ideologias precursoras de exclusivismos notavelmente destruidores e genocidas.

[3] Filósofo francês (1913-2005) que contribuiu para a linguística, psicanálise, fenomenologia e hermenêutica, e interessou-se por questões envolvendo o existencialismo cristão e teologia protestante (influenciado pelo suíço Karl Barth). Além de órfão de mãe e de pai (este morreu em conflito bélico em 1915), foi prisioneiro pelos nazistas na Segunda Guerra, passando por dois campos de concentração.

[4] Teólogo suíço, cuja abordagem coaduna com as percepções de Paul Ricoeur, referente fenomenologia como instrumento metodológico para a Teologia.

[5] Na obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha tece uma análise sobre o movimento organizado por Antônio Conselheiro, considerando-o como patologia social, ou seja, seguindo em linhas parecidas com os de Raimundo Nina Rodrigues, um médico que fundamentava suas pesquisas sobre a violência e o banditismo social em vistas da análise de crânios dos representantes populares dos movimentos sociais.

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