MACHADO DE ASSIS –
Adão & Eva
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecadomuito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.Rezaria seus versos, os mais belos,Desses que desde a infância me embalaramE quem me dera que alguns fossem meus!Porque a poesia purifica a alma... e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – um belo poema sempre leva a Deus!
MARIO QUINTANA
O escritor fluminense Machado de Assis, ao lado de Eça de Queiroz, por muitos é considerado como o melhor escritor de língua portuguesa do século XIX. Iniciou sua trajetória como contista, seu primeiro texto data de 6 de janeiro de 1855 (cf. ANTUNES & MOTTA, 2008, p. 33). Em 1858 publica “Três tesouros perdidos”, avançando sua produção literária como poeta (“Crisálidas” e “Falenas”), publicadas em 1864 e 1870, respectivamente.
Representou-se também como dramaturgo, produzindo peças teatrais na antiga capital da República, Rio de Janeiro, e também como autor de romances, crônicas, críticas literárias, entre outras modalidades de produção cultural relacionadas às letras e oratória.
Considerado como pertencente a última geração da escola do
romantismo no Brasil, foi o responsável por inaugurar uma outra escola literária
brasileira: o realismo, sendo este caracterizado, sobretudo, por aspectos como
a “crítica social”, dotada de maior ousadia em relação a composição de temas
como escravidão, burguesia, transição política, casamento, “desteificação do
mundo”[1],
por exemplo.
Entretanto, o bruxo do Cosme Velho (apelido dado por alguns
moradores do bairro onde residia o autor nos últimos anos), fugia a algumas das
características desse gênero literário (Realismo), evitando o determinismo e o
cientificismo, por exemplo; inclusive tecendo críticas a estes fenômenos
sociais latentes e em voga naquela época, também denominada de “mundo
tardomoderno” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 29).
Construindo seus personagens ao redor de dilemas universais,
complexidades locais e fenômenos históricos e de rupturas na ordem estabelecida
(stablishment), buscou envolver e
aguçar o leitor a ampliar sua visão ética, estética e psicológica,
possibilitando-lhes o “alcance caleidoscópico das realidades múltiplas”[2].
Principalmente nas obras de sua fase ligadas ao período do
realismo, podemos encontrar elementos que remetem a construção literária
caracterizada por metáforas, sendo que a intencionalidade dos efeitos se
voltavam mais para aspectos fenomenológicos do que para a construção de realidades últimas das circunstâncias
abordadas.
Neste sentido, visando facilitar a compreensão desta característica
em suas obras, incluindo-se o conto “Adão & Eva”, sinalizamos o conceito de
“metáfora viva” (grifo nosso) elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur[3].
Observamos no enredo deste conto um Machado de Assis preocupado com a
criatividade da linguagem e seu alcance para uma realidade fenomenológica, ou
seja, uma realidade mais relacionada à experiência e a uma noção de percepção
criativa e espontânea das vivências do que para uma realidade conceitual e
ideológica, estabelecedora de dogmas e fins dotados de juízos de valor.
Neste ponto, quando refletimos sobre a metáfora viva, a literatura
passa a equivaler-se de novas funcionalidades, como as ressignificações
adaptáveis às múltiplas percepções
dos leitores, quando imergidos na complexidade figurativa dos personagens
machadianos. Assim, a “obra literária passa a ter um mundo autônomo”
(CONCEIÇÃO, 2013, p. 22), uma vida própria que rompe uma antiguidade de compreensão
aristotélica pautada nos processos “miméticos” (grifo nosso), ou seja, em
experiências comparadas com outras vividas ou imaginadas.
E aqui podemos observar a conjunção deste conceito, a saber: a
metáfora viva, dentro do contexto do conto “Adão & Eva”, que traz novas
significações mesmo dentro do próprio enredo, tendo em vista que o autor
leva-nos a repensar o sentido essencial do texto, desconstruindo a nossa
direção, que tende se voltar para a discussão envolvendo a dogmática cristã;
pelo contrário, aqui apresenta a beleza textual criativa ao nos fazer observar,
mesmo que subliminarmente, um contexto bem distinto: a expectativa por saborear
“o doce”, em detrimento aos apelos retóricos narrados ao longo do conto. Saborear
o doce, para o autor, recebe nitidamente ares de um protagonismo, mesmo
contendo poucas linhas no texto. O doce é “per
se”, e se transforma distintamente ontológico, que existe, independentemente
de conjecturas humanamente frágeis, formulações irresponsavelmente
solidificadas pela natureza de uma historicidade débil nas reinterpretações
sofridas.
Inferimos, portanto, que
há uma subordinação do aspecto semântico
do símbolo em relação à metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma
região não-verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que
há uma cúmplice relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a
superfície linguística dos símbolos e ainda uma inovação discursiva [...]
poderemos também dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário
operado pela atuação metafórica pode promover um processo de equivalência entre
o sentido manifesto e as profundidades
simbólicas de nossa existência (grifo nosso). (RICOEUR, 2000, p. 80 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 23-24)
Ainda, poderíamos sinalizar essa questão, a saber: sobre a
linguística dos símbolos, apontando para realidades “encobertas” (grifo nosso),
mas que podem se tornar acessíveis mediante uma dimensão não-verbal,
supostamente manifestada pela metáfora, diante da compreensão por Paul Tillich[4],
que expõe sua análise, pautando-se que o símbolo é devedor a “noção de história
[...] emergem e desaparecem de acordo com épocas” (ibid, p. 25). Compete-nos saber que a época em que foi publicado o
conto “Adão & Eva” contextualizava com uma ambientação influenciada pelo
ceticismo oriundo de um racionalismo filosófico, bem como teorias ligadas a um
darwinismo social, até mesmo por parte de ícones do pensamento científico
brasileiro, como o caso das interpretações euclideanas[5]
acerca de fenômenos de messianismos, revoltas e insatisfações provocadas por
rupturas como o advento da República, entre outros.
As confluências do nosso contista às percepções paralelas de Paul
Ricoeur e Paul Tillich leva-nos compreender, mesmo que parcialmente, a
complexidade de sua narrativa, quando apresenta uma temática polêmica e, ao
invés de sugerir alguma projeção conclusiva acerca das ideias alocadas,
leva-nos a um desfecho distinto daquele aguardado pela maioria dos leitores, ao
longo do conteúdo abrangente no conto.
torna-se “possível compreender que a
suspensão de uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra
literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível como
pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado mundo do texto. Neste
mundo, entretanto, é possível perceber as operações imaginativas que a
literatura efetua sobre o real (CONCEIÇÃO, 2013, p. 27)
Portanto, se considerarmos os elementos temporais e espaciais os
quais o nosso autor estava inserido (relevância histórica), bem como suas
influências literárias (Dante, Voltaire, Shakespeare, Victor Hugo, Edgar Allan
Poe, entre outros), resta-nos enfatizar nitidamente a impossibilidade de se
colher, através da leitura de suas obras, vereditos conclusivos ou percepções
definitivas que venham alçar uma ideia de verdade
última das coisas. Sabe-se que, para Machado de Assis, as “tentativas
repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas. Quando se
chega ao ápice de tal odisseia – a cisão entre mundo verdadeiro e mundo
aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava
em si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus” (CASANOVA, 2003,
p. 194 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 31).
Cabe ainda ressaltar que para Paul Ricoeur, na sua obra “A metáfora
viva”, o mito de Adão representa a universalidade do mal, e Adão representa,
deste modo, a humanidade toda. Neste sentido, observamos semelhanças com a
percepção de Tillich, visto que
o próprio movimento expressionista foi muito caro a
Paul Tillich não porque se configurava com uma degenerada (grifo do autor)
expressão artística, mas porque era portador de elementos que, através da
desfiguração da superfície do real, representavam a restauração do poder do
simbólico e a busca pelo fundamento da realidade, num momento específico e
historicamente construído. Seria a religião, por meio das expressões criativas
do ser humano, o estado em que o ser humano passaria ser tomado por algo
incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua preocupação última. A religião,
se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um lugar de enraizamento de
sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o espaço mesmo de nossa
preocupação suprema. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 76)
Contudo nossa reflexão não se paute numa ordem puramente teológica agnóstica
ou alguma religiosidade entrelaçada com aspectos ateístas, podemos sugerir que
o bruxo do Cosme Velho buscou vingar-se do deus forjado pelo consciente coletivo,
vingança arquitetada através de um doce, salpicado em doses homeopáticas na
teologia cristã, e recheado de uma “preocupação suprema” e, por que não,
sublime. Mas engana-se quem pensa que o autor do conto Adão & Eva
contrapunha-se a ideia de espiritualidade ou até mesmo a uma filiação
religiosa:
Entretanto
ia-me afeiçoando à ideia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens
de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à
missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no
padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa – um tanto às
escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira.
Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o
ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce (grifo nosso). (ASSIS, Dom
Casmurro, cap. XI – A Promessa)
Pois que, mesmo diante de um deus
morto, “não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo
da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num
combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo” (BLANCHOT, 1997, p.
15-16 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 90). Por mais contundente e exposto
(expressionismo) que se apresenta uma possibilidade de vingança ao deus
conceitual, na criatividade artística nem a morte se torna realidade, mas a
vida, com sua bela complexidade.
A exemplo da personagem
machadiana, o juiz de fora, também trocaríamos o divino por um prato de doce,
propiciando, literalmente, uma “doce vingança”, ou nos dobraríamos ao encanto,
como o bruxo do Cosme Velho, de extrairmos do texto bíblico o néctar: a beleza
trágica?
PONTOS DE REFLEXÃO:
- A união entre o frei (teologia)
e o juiz de fora (inventividade criativa – realismo fantástico);
- Alusão ao livro de Jó, onde há
uma onisciência evidente em Deus, enquanto que satanás opera a maldade, porém,
sob a observância e autorização divina;
- Alusão ao fato de que, se Adão
e Eva tivessem ido para o céu, então as pessoas que se encontravam ao redor da
mesa tinham como filiação satanás; e também uma suposta alusão de que o “mundo
jaz no maligno” (1 Jo 5:19), confluindo com a ideia do texto 2 Co 4:4: “nos
quais o deus deste mundo (o príncipe deste século) cegou o entendimento dos
incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de
Cristo, que é a imagem de Deus”.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Benedito & MOTTA,
Sérgio Vicente. Machado de Assis e a
crítica internacional. São Paulo: UNESP, 2009.
BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich
Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Teologias e literaturas 3 – Aspectos
religiosos em Machado de Assis. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.
MACHADO DE ASSIS, José Maria. Várias estórias. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola,
2000.
TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos.
Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974.
[1]
Alusão ao conceito nietzschiano da “morte de Deus”, abandono dos valores
sagrados, e também de um certo antagonismo à alienação religiosa promovida pelo
cristianismo institucional, vigentes na época.
[2]
A intensão daquele que vos escreve, no tocante à terminologia em questão, é
salientar uma das preocupações possíveis do autor, quanto às características da
época em que viveu, como por exemplo, um cientificismo pragmático e
determinismos sociais herdados da era moderna, que outrora promoveria
catástrofes inéditas como as Grandes Guerras Mundiais e outras tragédias não
menos sangrentas, oriundas de fundamentalismos e ideologias precursoras de
exclusivismos notavelmente destruidores e genocidas.
[3]
Filósofo francês (1913-2005) que contribuiu para a linguística, psicanálise,
fenomenologia e hermenêutica, e interessou-se por questões envolvendo o
existencialismo cristão e teologia protestante (influenciado pelo suíço Karl
Barth). Além de órfão de mãe e de pai (este morreu em conflito bélico em 1915),
foi prisioneiro pelos nazistas na Segunda Guerra, passando por dois campos de
concentração.
[4] Teólogo suíço, cuja abordagem coaduna com as percepções de Paul Ricoeur, referente fenomenologia como instrumento metodológico para a Teologia.
[5]
Na obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha tece uma análise sobre o movimento
organizado por Antônio Conselheiro, considerando-o como patologia social, ou
seja, seguindo em linhas parecidas com os de Raimundo Nina Rodrigues, um médico
que fundamentava suas pesquisas sobre a violência e o banditismo social em
vistas da análise de crânios dos representantes populares dos movimentos
sociais.