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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Livro "A alegria de ensinar", de Rubem Alves

Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais...

(Rubem Alves)
 

O autor, mineiro da cidade de Boa Esperança, formou-se em Teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas em 1957, pastoreou a igreja presbiteriana de Lavras de 1958 a 1963; foi para Nova York, onde formou-se mestre em Teologia pela Union Theological Seminary, retornando em 1964.  Em 1968 foi perseguido pelo regime militar , foi também denunciado pelas autoridades da igreja presbiteriana como subversivo. Retornou com a família para os EUA, adquirindo lá seu doutorado (Ph.D.) de Filosofia em Princeton Theological Seminary. Hoje é professor da UNICAMP, psicanalista e “jardineiro”. É também autor de preciosas obras como: “Teologia do Cotidiano”; “O Retorno Eterno”; “O Passarinho Engaiolado”; “Filosofia da Ciência”; “Entre a Ciência e a Sapiência”; etc.
 
Na crônica “A Alegria de Ensinar”, o autor critica a estrutura dos métodos educacionais hodiernos, trazendo soluções baseadas na conexão do saber aplicado á vida prática. Sua narrativa nos leva ao campo primitivo do aprendizado, projetando as consequências de uma sociedade materialista pragmática e dissociada da verdadeira qualidade de vida.
Este livro foi gentilmente emprestado por minha irmã Elizeli. Caso o livro não fosse muito bom, certamente eu lhe teria devolvido rapidamente, pois segundo ela, eu realizaria a leitura em uma tarde, devidos às suas poucas páginas. Mas levei exatos três dias, onde parei diversas vezes para refletir sobre o contexto de um tema tão significante para o progresso sadio da humanidade.
Alguns fragmentos que deixo aqui:
“Basta contemplar os olhos amedrontados das crianças e os seus rostos cheios de ansiedade para compreender que a escola lhes traz sofrimento. O meu palpite é que, se se fizer uma pesquisa entre as crianças e os adolescentes sobre as suas experiências de alegria na escola, eles terão muito o que falar sobre a amizade e o companheirismo entre eles, mas pouquíssimas serão as referências à alegria de estudar, compreender e aprender [...] Não me espanto, portanto, de ter aprendido tão pouco na escola. O que aprendi foi fora dela e contra ela. Jorge Luís Borges passou por experiência semelhante. Declarou que “estudou a vida inteira, menos nos anos em que estava na escola”. Era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas por rostos e vozes que não queriam ser amados”.
“Os métodos clássicos de tortura escolar como a palmatória e a vara já foram abolidos. Mas poderá haver sofrimento maior para uma criança ou um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que ele não consegue compreender, e que nenhuma relação parecem ter com a vida?”
“Os técnicos em educação desenvolveram métodos de avaliar a aprendizagem e, baseados em seus resultados, classificam os alunos. Mas ninguém jamais pensou em avaliar a alegria dos estudantes. [...] Daí o paradoxo com que sempre nos defrontamos; quanto maior o conhecimento, menor a sabedoria. T.S. Eliot fazia esta terrível pergunta: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?”
“Hermann Hesse dizia que dentre os problemas da cultura moderna a escola era o único que levava a sério. [...] Nietzsche, que via a sua missão como a de um educador, também se horrorizava diante daquilo que as escolas faziam com a juventude; “O que elas realizam, ele dizia, é um treinamento brutal, como o propósito de preparar vastos números de jovens, no menor espaço e tempo possível, para se tornarem usáveis e abusáveis, a serviço do governo. Em vez de “a serviço do governo”, diria “usáveis e abusáveis a serviço da economia”.
“Meditei sobre o destino das vacas. Fiquei poeta. A gente fica poeta quando olha para uma coisa e vê outra. É isso que tem o nome de metáfora. Olhei para a carne cortada, o moedor, os rolinhos e vi uma outra; escolas! Assim são as escolas...As crianças são seres oníricos, seus pensamentos têm asas. Sonham sonhos de alegria. Querem brincar. Como as vacas de olhos mansos, são belas, mas inúteis. E a sociedade não tolera a inutilidade. Tudo tem de ser transformado em lucro. Como as vacas, elas têm de passar pelo moedor de carne. Pelos discos furados, as redes curriculares, seus corpos e pensamentos vão passando. Todas são transformadas numa pasta homogênea. Estão preparadas para se tornar socialmente úteis. E o ritual dos rolos em plástico? Formatura. Pois formatura é isto: quando todos ficam iguais, moldados pela mesma fôrma. Hoje, quando escrevo, os jovens estão indo para os vestibulares. O moedor foi ligado. Serão transformados em ferramentas. As ferramentas são úteis. Necessárias. Mas – que pena – não sabem sonhar...”
“Palavras, coisas etéreas e fracas, meros sons. No entanto, é delas que o nosso corpo é feito. O corpo é a carne e o sangue metamorfoseados pelas palavras que aí moram. Os poetas sagrados sabiam disso e disseram que o corpo não é feito só de carne e sangue. O corpo é a Palavra que se fez carne: um ser leve que voa por espaços distantes, por vezes mundos que não existem, pelo poder do pensamento. Pensar é voar. Voar com o pensamento é sonhar. [...] O corpo de uma criança é um espaço infinito onde cabem todos os universos. Quanto mais ricos forem esses universos, maiores serão os vôos da borboleta, maior será o fascínio, maior será o número de melodias que saberá tocar, maior será a possibilidade de amar, maior será a felicidade.”
“Amar é brincar. Não leva a nada. Porque não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Coisas que levam a outras, úteis, revelam que ainda estamos a caminho: ainda não abraçamos o objeto amado. Mas no brinquedo temos uma amostra do paraíso. Dizem que o trabalho enobrece. Poucos se dão conta que ele embota, cansa e emburrece.”
“Pois o que é um poema? É claro que não é a coisa. Se o poema fosse a coisa ele seria supérfluo, desnecessário, pura tautologia. O poema é um objeto impossível que construímos pela magia do jogo das palavras. “O silêncio verde dos campos...” Onde já se viu isso? Silêncio verde não existe. Mas o poeta brinca com as palavras e o silêncio verde aparece. [...] O professor é aquele que ensina a criança a fazer flutuar suas bolinhas de vidro dentro das bolhas de sabão. Tudo o que é pesado flutua no ar.”
Dizer que o Brasil é o país do futuro por causa das florestas, ferro, ouro, diamantes, é o equivalente a afirmação de que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz o quadro não é a tinta: são as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela. Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre. Somos pobres em idéias. Não sabemos pensar. O bem que não se vende são as idéias. É com as idéias que o mundo é feito. [...] Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?” Disse-me que esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia proposto á classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro por ter ido diretamente á questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque, se tivesse dado a resposta, teria ela cortado as asas do pensamento. [...] Não existe nada mais fata para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.
Nas palavras de Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe...” E o curioso é que esse aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar. [...] Há um nível de aprendizado que o pensamento é um estorvo. Só se sabe bem com o corpo aquilo que a cabeça esqueceu. E assim escrevemos, lemos, andamos de bicicleta, nadamos, guiamos carros: sem saber com a cabeça, porque o corpo sabe melhor. É isso me poupa do trabalho de pensar o já sabido. Ensinar, aqui, é inconscientizar. O sabido é o não pensado, que fica guardado no cérebro. Não é coisa que eu tenha inventado, me foi ensinado. Não precisei pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental. Só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda. E o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no coração –, à espera de que a tecla do desejo de novo o chame do seu lugar de esquecimento. Fazer esquecer para fazer lembrar. Memória: um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos legaram. E elas são boas. Tão boas que elas nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre mares desconhecidos.
Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se de águas em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas universitários.
Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o passado legou – e ensinar bem – fazem os alunos se esquecerem de que o seu destino não é o passado cristalizado em saber, mas um futuro que se abre como vazio, um não-saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-se então que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se ensina o que se sabe, deve chegar o tempo quando se ensina o que não se sabe.
“O seu saber é um pássaro engaiolado, que pula de poleiro em poleiro, e que você leva para onde quer. Mas dos sonhos saem pássaros selvagens, que nenhuma educação pode domesticar”.
“...Meu saber o ensinou a andar por caminhos sólidos. Indiquei-lhe as pedras firmes, onde você poderá colocar os seus pés, sem medo. Mas o que fazer quando se tem de caminhar por um rio saltando de pedra em pedra, cada pedra uma incógnita? Ah! Como é diferente o corpo movido pelo sonho, do corpo movido pelas certezas”.
“Até agora eu o ensinei a marchar. É isto que se ensina nas escolas. Caminhar com passos firmes. Não saltar nunca sobre o vazio. Nada dizer que não esteja construído sobre sólidos fundamentos. Mas, como o aprendizado do rigor, você desaprendeu o fascínio do ousar. E até desaprendeu mesmo a arte de falar. Na Idade Média os pensadores só se atreviam a falar se solidamente apoiados nas autoridades. Continuamos a fazer o mesmo, embora os textos sagrados sejam outros. Também as escolas e universidades têm os seus papas, seus dogmas, suas ortodoxias. O segredo do sucesso na carreira acadêmica? Aprender a fazer tudo o que o seu mestre mandar...”
“... Agora o que desejo é que você aprenda a dançar. Lição de Zaratustra, que dizia que para se aprender a pensar é preciso primeiro aprender a dançar. Quem dança com as idéias descobre que pensar é alegria. Se pensar lhe dá tristeza é porque você só sabe marchar, como soldados em ordem unida. Saltar sobre o vazio, pular de pico em pico. Não ter medo da queda. Foi assim que se construiu a ciência: não pela prudência dos que marcham, mas pela ousadia dos que sonham. Mas sonhar é uma coisa que não se ensina. Brota das profundezas do corpo, como a água brota das profundezas da terra.”
“Dinheiro é um objeto que só dá pensamentos de comprar. A riqueza, com frequência, não faz bem ao pensamento. Mas a pobreza faz sonhar e inventar. Carrinho de pobre tem de ser parido. A professora deve ter notado que ele estava distraído, ausente, olhando o vazio fora da janela. Falou alto para chamar sua atenção. Inutilmente. Ela não percebeu que distração é atração por um outro mundo. Se os professores entrassem nos mundos que existem na distração de seus alunos eles ensinariam melhor. Tornar-se-íam companheiros de sonho e invenção. O menino virou poeta. Entrou no mundo das metáforas: isto é aquilo. Ele disse: “Esta lata de sardinha é o meu carro...” O menino, sem saber, executou uma transformação mágica. [...] O amor é o pai da inteligência. Sem amor todo o conhecimento permanece adormecido, inerte, impotente. [...] Os profissionais da educação pensam que o problema da educação se resolverá com a melhoria das oficinas: mais verbas, mais artefatos técnicos, mais computadores. Não percebem que não é aí que o pensamento nasce. O nascimento do pensamento é como o nascimento de uma criança. Tudo começa com um ato de amor. Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos”.
“O menino sonhava. Como Deus, que do nada criou tudo, ele tomou o nada em suas mãos, e com ele fez o seu carrinho. Imagino que, também como Deus, ele deve ter sorrido de felicidade ao contemplar a obra de suas mãos...”

(In: Alves, Rubem. A Alegria de Ensinar. Papirus Editora, 11ª ed. Campinas. 2007. 93p.)